- Tá aqui seu uísque, cowboy - falou Miguel pra Gustavo estendendo a ele o copo de uísque sem gelo.
- Ah! Muito obrigado - agora pegando o copo Gustavo - não gosto com gelo, a coisa diluída e tudo mais.
- Eu tampouco gosto de uísque - respondeu pegando o copo de água.
- E pensar que é logo você o que menos bebe aqui hoje - analisou Rafael.
- Pois é, quem diria! - continuou Gustavo.
- Eu já bebi hoje, duas latinhas ali de cerveja, ambas já estão vazias - riu Miguel.
- Olha, venham ver isso - disse Patrícia abrindo a porta da cozinha em que os rapazes com exceção de Pablo estavam.
- Me fala uma coisa bonita - foi o que escutaram Raquel falar ao telefone assim que entraram na sala - vai, me fala uma coisa bonita.
- Que coisa baranga - sussurrou Gustavo pra Miguel que riu - nem eu pra fazer uma coisa dessas.
- Com quem ela tá falando hein? - perguntou Rafael.
- Ih, tá com ciúmes, é? - debochou Gustavo.
- Com o CVV, ela ligou pro CVV cara - disse Patrícia.
- Meu Deus - riu quase alto Pablo - isso é bem engraçado.
- Me fala algo bonito oras, não é pra isso que te pagam? Pra falar algo bonito? Pra fazer as pessoas acreditarem ou qualquer merda do tipo? - disse Raquel.
- Não é bem assim - respondeu do outro lado o operador da CVV.
- Cara, eu to aqui, querendo me matar, sozinha numa noite de sábado e a única coisa que eu quero é ouvir algo bonito e você não consegue me dizer - disse calmamente e bastante seria Raquel, ao lado dela todos riam, Pablo ria sentado mais afastado no sofá, mais sozinho - sabe, eu sei tocar piano, mas ninguém nunca quer escutar mesmo.
- Mas você já tentou mostrar isso pra alguém?
- É claro que sim! Mas ninguém tá nem ai pra ninguém não. Esse é o problema do mundo de hoje.
- Eu não acho que seja assim.
- Você se importa comigo? - disse Raquel e fez sinal pros outros fazerem silêncio.
- Claro, pra isso que o CVV existe - repondeu o atendente.
- Você me ama?
- Eu te amo.
- Então faz sexo comigo pelo telefone - disse Raquel, todos seguraram muito o riso, Rafael deixou escapar.
- Tem alguém ai? Você tá sozinha?
- Estou sim.
- Mas e esse barulho?
- É a tevê.
- Ah...
- E então, você não me ama? Então, vamos trepar pelo telefone?
- Eu não posso, porque fiz um acordo com o CVV e esse acordo não pode ser quebrado - disse sem graça o atendente.
- Eu não acredito que ela está fazendo isso - comentou Miguel pra Patrícia baixinho.
- E dai pras regras?! NO AMOR NÃO EXISTEM REGRAS! Não é o que vivem dizendo por ai? Então, você não poderia quebrá-las? Você disse que me amava...
- Não é bem assim, veja bem... - tentando desconversar o atendente.
- Claro que é, não vem me dizer que não se sente sozinho e que é feliz - disse como se quisesse agredir o atendente.
- Eu sou feliz sim.
- Se fosse feliz não estaria trabalhando no CVV as três da manhã dum sábado.
- Não, não... - meio sem voz, e totalmente sem defesa.
- Olha, eu posso ir agora ai? Dai a gente se conhece, senta e toma um café, uma cerveja, uma água se você não quiser nada disso, um refrigerante, uma coca-cola, qualquer coisa?
- Eu não posso conhecer as pessoas que eu atendo, é um acordo que...
- Eu não to interessada em nenhum acordo oras! Vamos fazer um acordo entre eu e você cara, vamos nós dois nos amar pra sempre e não vamos deixar nada acontecer pra nos separar, é esse tipo de confiança que a gente devia precisar.
- Não, é que...
- Raquel tá destruindo o sujeito - riu baixinho pra Miguel e depois Gustavo continuou - coitado, e tudo isso pra gente dar umas risadas a mais.
- Deve-se valer a pena - disse o que mais se divertia, Rafael. Depois Patrícia fez sinal de silêncio.
- Essa minha ligação só tá me fazendo mais sozinha... Você gostaria de me ouvir tocar piano?
- Claro.
- Escuta então - Raquel foi andando com o telefone até o piano, sentou-se e começou a tocar Eric Satie - Não é bonito? Eu não toco bem? Nunca sei porque ninguém que me ouvir tocar - falou a última frase com um pouco de soluço.
- Você toca muito bem sim.
- E então porque a gente não se conhece e eu toco pra você?
- Você pode vir aqui durante o dia.
- Mas eu vou te encontrar?
- Não, eu só trabalho aqui à noite.
- E não posso te encontrar em outro lugar?
- É que eu fiz um acordo com o CVV...
- OLHA! EU TÔ POUCO ME FUDENDO PRA QUALQUER ACORDO QUE VOCÊ FEZ COM QUALQUER MERDA DESSAS! É ENTRE EU E VOCÊ CARA, é entre eu e você - disse soluçando mais uma vez Raquel.
- Mas é que não dá.
- É uma merda essa vida mesmo, ninguém nunca está disposto a abrir mão de nada mesmo, pra ninguém, por isso tá todo mundo tão sozinho, todo mundo fingindo que tá se divertindo sozinhos por ai, dança sem par, é tudo tão triste, se você soubesse, não sei porque você trabalha nisso cara, como se fosse capaz de salvar alguém.
- Eu venho aqui pra ajudar as pessoas - disse como que parecendo querer desligar o telefone.
- Acho que isso não vai acabar bem - disse baixinho Miguel no ouvido de Patrícia. Os outros ainda riam, Pablo olhava pro teto e ouvia tudo com boa atenção.
- É a televisão deixando a gente sozinha, porque ela não é companhia direito cara - disse Raquel - é essa pós-modernidade que só mata a gente, que só se disfarça muito bem dizendo que encurtam distâncias nas telecomunicações, mas cara, ta todo mundo muito fodido nesse mundo, muito, porque ninguém liga pra ninguém na verdade, cada qual com sua história, cada qual com sua legalização do eu eu eu, me irrita cara, todo mundo só ri, ninguém está disposto a chorar por ninguém e é por isso - disse soluçando muito - que eu tenho que ficar aqui chorando por todo mundo - e desabou a chorar.
- Calma, fique calma.
- Nossa, ela finge bem mesmo, não sabia disso - disse Rafael para Pablo se aproximando dele no sofá.
- Mesmo - respondeu Pablo.
- E sabe, eu não sei porque a gente deve continuar isso se nem eu e nem você, principalmente você, se você não está disposto a poder nos elevar dessa nossa posição tão mesquinha da vida que eu finjo que sofro e você finge que se importa, porque você não se importa, porque quando eu desligar esse telefonema você vai atender outro falando "Boa Noite, CVV" - disse Raquel molhando todo o rosto.
- Mas eu me importo - disse o atendente - é que...
- É que o que?
- É que temos que seguir certas normas...
- NORMAS?! NORMAS?! QUE DIABOS NORMAS?! AS NORMAS NOS LEVARAM ATÉ AQUI! VOCÊ POR ALGUM ACASO ACHA QUE ESTAMOS INDO BEM?
- Bom, não estamos tão mal assim.
- Como não?
- Meu deus, acho que ela ta chorando de verdade - disse Miguel pra Patrícia que também começava a perceber isso.
- Para de rir Gustavo, acho que isso já não está tendo mais graça alguma - disse Patrícia.
- Como não? É engraçadíssimo, não sabia que Raquel tinha esses dons?
- Que diabos de dons o caralho, não vê que ela ta chorando porra? - disse raivoso Miguel.
- É de brincadeira... - disse Rafael meio sem graça e percebendo a bobagem tentou dizer algo - mas, mas, mas...
- Mas então eu acho que vou desligar e devo me matar já que acho que ninguém é mais capaz de salvar uma mosca - disse pra concluir Raquel.
- Não, calma ai, você devia mostrar as coisas...
- Não devia mostrar mais nada - e assim desligou o telefone. Ficou um tempo olhando pro piano até que Miguel e Patricia se aproximaram.
- Vocês são mesmos uns idiotas - disse Patrícia censurado todos.
- Obrigado hein - disse Pablo.
- Principalmente você.
- Ahn? - assustou-se Pablo.
- Raquel, você tá bem - disse Miguel - que uma água? Quer ir ali dentro pra conversarmos?
- Não, tudo bem, era só uma brincadeira... vocês riram e...
- Não precisa se esconder de mim mais Raquel - disse delicadamente Miguel sendo cutucado por Rafael.
- Meu bem, o que você tem? - perguntou.
- Não quero falar com você - frisou Raquel.
- Meu deus! Por que não?
- Não agora - disse firmemente.
- Que confusão de merda... - disse pensando alto Gustavo.
- Pablo - disse Patricia - eu, alias, eu a Miguel temos que te falar uma coisa. Já que tá tudo uma merda mesmo, então vamos aproveitar, eu e Miguel, a gente está namorando.
- Mas como assim? Eu e você estávamos namorando? - disse Pablo não conseguindo entender nada mais.
- Meu deus, que babado! - disse mais uma vez pensando alto Gustavo. Todos olharam pra ele e depois olharam pro então recém ex-casal.
- É isso - disse também firmemente Patrícia.
- Eu... ahmm eu, eu vou embora. Não sei mais o que fazer aqui - disse Pablo, que se levantou rapidamente abriu a porta e foi embora enquanto todos olhavam atônitos pros últimos dez minutos tentando ter o mínimo de estabilidade.
- Eu acho que é bom eu ir embora também, vou só arrumar umas coisas aqui e já vou, acho melhor - disse Gustavo.
- É, eu e Miguel também vamos, vamos deixá-los a sós, devem ter o que conversar, vamos só arrumar umas coisas - disse Patrícia.
- Ok, ok... – disse Raquel com o restinho de choro.
- Tudo bem, eu arrumo depois - disse Rafael tentando ser delicado.
- Tudo bem então, Gustavo dá pra você ligar pra Pablo daqui a pouco pra ver como ele tá? - disse Miguel.
- Sim, claro. E Raquel, me desculpe por estar rindo... é que...
- Tudo bem - respondeu.
- Não foi intenção... - ainda tentando consertar.
- Já disse que tudo bem - olhou pra ele Raquel e riu um sorrisinho muito brando.
- Vamos, acho melhor então a gente ir - disse Patrícia pra Miguel e Gustavo - vamos?
- Tchau - disse junto Raquel e Rafael.
- Tchau - respondeu os outros três.